segunda-feira, 7 de abril de 2008

De Eugénio de Andrade, com amor.

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.



in "Os Amantes Sem Dinheiro" (1950)

Eugénio de Andrade

7 comentários:

Anónimo disse...

É muito bom ter como eu 65anos e ainda ter carinhos e, dar carinho à minha mãe.
Agora estou como tu dizes," lá estou eu com a lamechice"
bjo
José Manangão

Fernando Samuel disse...

Eugénio de Andrade é um dos «meus» poetas: descobri-o nos meus 17 anos e foi um alumbramento...
Obrigado.
Um beijo amigo.

samuel disse...

E depois, talvez para nos desesperar, diz que "as palavras estão gastas"...

Abreijo

Justine disse...

Sal, entrei em tua "casa" em muito boa hora: Eugénio, o meu poeta de sempre, e exactamente com um dos poemas que mais me emociona, porque ao lê-lo ouço sempre o meu filho...
Obrigada pela tua visita, mas infelizmente o papa ainda consegue ser um pouco mais conhecido que o Mounty :))

Sal disse...

Olá Manangão:

Que bom ter uma mãe aos 65 anos.
Infelizmente perdi a minha aos 21.
Mas nunca se apaga de nós, nunca se vai embora, a nossa mãe.

Fernando Samuel:
A poesia de Eugénio de Andrade é preciosa. Não encontro melhor palavra.

Samuel:
É verdade.
Mas, as palavras só se gastam se forem mal utilizadas, desenquadradas.
No entanto, pela mão de Eugénio de Andrade, nunca se gastam, para nosso bem.

Justine:

O papa é mais conhecido que o Mounty MAS NÃO MERECE!!!!
:-))
Volta sempre, que eu também volto ao Quarteto.

Beijinhos a todos,
boa semana.

Anónimo disse...

"Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim."

Obrigado, Eugénio, por entreposta Sal e seus comentadores.
Vai sair história ante(s)passada.
"Vou com as aves" para o meu blog.

GR disse...

Gosto muito do Eugénio de Andrade.
Tive a oportunidade de o conhecer através do seu gato (não tão conhecido como Mounty !)
Enternece-me especialmente este poema.

A todas as mães um doce beijo,

GR